sexta-feira, 20 de outubro de 2006

Aonde Jogarão Minhas Cinzas?


Esta pergunta me veio da noticia de que as cinzas de Scotty, - aquele tripulante da Enterprise de Jornada nas Estrelas, lembram? – irão para o espaço agora em outubro. Na verdade são as cinzas de James Doohan, pois o corpo de Scotty já desapareceu há mais tempo junto com o seriado. Contudo, o que é verdade aqui não interessa. Para os fãs, Scotty foi para o espaço.
Mas voltando à terra e à minha pergunta, passou a me preocupar onde serei jogado. Eu mesmo, não meus personagens. Poderia ser no espaço também, já que minha mãe sempre disse que eu vivia no mundo-da-lua. Aliás, no espaço não se joga nada; larga-se, se lança, se solta. É até mais bonito. Porém, como o preço da dimitil-hidrazina (combustível de foguete) anda em alta, melhor não me iludir. Mesmo se fizesse uma poupança desde já, quem é que me assegura que minha família não vá ser convencida de que isto é uma excentricidade, um capricho em detrimento de tantas necessidades, etc.? Mesmo porque, quietinho numa caixinha, já não teria tanta força de argumentação. Pior fatalidade: no momento de ser solto no espaço, por um desses acidentes de percurso, a caixinha escapasse das mãos do ente querido escolhido para a missão – pois aquelas roupas de astronauta atrapalham – e eu vagasse pela vastidão do universo, preso dentro de uma caixinha, com meteoritos tirando fina, pra todo o sempre.
Pode ser no mar. Do mar sempre tive medo. Na praia, quando entro no mar, nunca passo da cintura. Aliás, se me virem com água pelo peito, corram a me socorrer, pois estarei tentando me matar. Com o gesto de minhas cinzas jogadas em alto mar, com o réquiem das gaivotas e do zumbido do vento ao fundo, estaria dizendo aos familiares e poucos amigos presentes em tão inviável cerimônia fúnebre: a morte sempre vence o medo. Mas isso, acho que também não vou querer. A maré acabaria por me trazer de volta à terra; à areia. Então as crianças da classe média fariam seus castelinhos com os agregados das minhas cinzas, construindo e desconstruindo. Estaria simultaneamente em dois castelos a guerrear contra mim mesmo. Se ao menos ficasse em uma dessas fortalezas arenosas... Mas já viu criança deixar um castelinho em pé? Com sorte, uma parte de mim poderia ficar em exposição numa bela sereia, escultura de areia, de algum artista de praia. Poético, mas improvável.
O mato também é outra opção. Adoro o mato. Mas nessas épocas de queimadas, seria bem provável que seria cremado reiteradas vezes até minhas cinzas perderem sua cor cinza original atingindo um negro final inaquarelável. O ator Raul Cortez foi jogado no campo, em seu sítio em Porto Feliz. Quem sabe, eu também possa repousar no pé de um jequitibá, uma paineira centenária, mesmo entre umas marias-sem-vergonhas, para escândalo de uns mais moralistas presentes ao cortejo. Aí, quando uma florzinha meio acinzentada brotasse alegre, entre as lilás, laranjas, vermelhas, brancas... Minha netinha gritaria: “olha mamãe, o vovô todo açanhado no matinho!”.
Num Rio? Pode ser, mas também vai acabar no mar e depois na terra... Não vamos retomar essa estória. Talvez me espalhar a esmo por aí, sobre a cidade de São Paulo, com um teco teco alugado. Mas causaria desgosto à minha família se, vazada a noticia de tal ritual, as pessoas aterrorizadas com essa garoa funesta, passariam a varrer e lavar com asco seus quintais e telhados. Fora a probabilidade ridícula de cair sobre cemitérios, cometendo então minha derradeira redundância, e de todas cometidas em vida, repito, a mais ridícula.
Poderá, porque não, eu ser depositado em um cinzeiro comum. Sem cerimônia, sem gesto, sem poesia, sem epitáfio, sem nada.
Essas idéias todas me preocupam, por isso vou pensar melhor, antes que eu tome uma decisão precipitada da qual venha a me arrepender.

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