quarta-feira, 18 de outubro de 2006

Banheiro de Sebo



Sou freqüentador de sebos. Para meu alívio, tenho constatado se tratar de folclore essa estória que só velhos aposentados e saudosistas tem o costume. Tenho visto muitos jovens, com os mais diversos interesses, fazê-lo. O sebo é o tipo de um limbo, onde almas estão aguardando por alguma salvação e outras, embora ainda sobreviventes, amargam o espaço na prateleira da danação eterna. E quando você entra então, sente que todas estão sofrivelmente a esperar um resgate; uma lembrança.
Feito essa parca defesa, vamos ao assunto. Postergo para um tempo maior e de maior inspiração para me aprofundar. Sabendo que se aprofundar em alguns temas, é entrar nos recônditos onde os ácaros, mais bélicos se mostram.
Neste que estou freqüentando no momento, algo de estranho se passa comigo no campo fisiológico. Como se houvesse um tipo específico de ácaro que ao invés de atuar nas vias respiratórias, o fizesse nas vias intestinais. Cientistas o chamariam de ácagarus relaxantis. Ou, há uma energia especial vindo de literaturas técnicas do assunto, cuja força sobrepuja a outras influencias. Ou também, a grave influencia das muitas edições em que o conteúdo é o próprio objeto do assunto ao qual me refiro. Enfim, fica aí uma pesquisa a se concluir.
O fato é que da última vez em que me atacou tal sentimento, não resisti a ele. Com força tamanha, como a tração das máquinas locomotivas que separam queridos que partem dos que ficam, assim me vi desistir dos Machados, Clarices e tantas queridas almas. Digo que não resisti, pois desta feita tive que de humilhação me vestir e chamando o Sérgio – dono do sebo – pedir para usar o banheiro, sem prefácios, mas com muitos agradecimentos. Não daria para chegar ao escritório. Mesmo porque, nesses momentos agudos em que o mais inadiável e importante dos afazeres se torna fútil tarefa, a distância entre o ponto acidental e o ponto ideal deve ser considerada; e rapidamente. É nesses instantes que temos compreensão de conceitos da física: A menor distancia entre dois pontos é infinitamente maior que as curvas do intestino delgado. A unidade anos-luz de distancia, também é percebida na prática. Anus-luz, se houvesse tempo para trocadilhos e se rir não fosse tão perigoso nessas horas.
O sebo está num sobradinho, desses sem recuos laterais, apertadinho e uma vez dentro é difícil identificar os ambientes do que fora aquela casa. Livros por tudo que é canto, revestindo as paredes em prateleiras pingentes, pilhas de literaturas no chão, nas mesas, ficando sempre uma brechinha mínima para se transitar, tão mínima que permite a um ácaro atravessar correndo de uma pilha a outra sem ser pisado. O dono parece um camaleão amalgamado com as estampas cor de pó, e é preciso uma certa concentração para achá-lo quando se entra. Nos fundos, - aonde me ocorrem os primeiros sintomas -
no que parece uma pequena copa, estão as literaturas nacionais, amontoadas numa pia velha encostada em prateleiras de metal que só não estão oxidadas por não haver espaço para troca de oxigênio. Mais ao fundo uma entradinha que leva a um cubículo escuro, ao qual eu não chegava por puro receio. A fantasia de qual literatura encontraria ali me assombrava. Porém, havia a esperança de se tratar de um banheirinho e talvez então, não fosse mister passar pela humilhação a qual já me referi. Qual valente que por uma missão nobre derrota guardiões horripilantes, fui. Disfarçando, mas decidido. Engano. Se houvera uma latrina ali, agora estava soterrada por livros, revistas e gibis. Um Super-homem em frangalhos parecia me dizer: “seja homem”.
Num piscar de olhos estava no piso de cima. Corredorzinho estreito, também recheado de livros antigos, técnicos e tudo. Um foco nevoado de luz me indicava a porta aberta do paraíso. Um cãozinho que corre ao encontro do seu dono não seria mais ligeiro do que eu ao adentrar. Passados os primeiros segundos, foi que me pus a reparar naquela decoração. Uma maravilha. Livros e revistas amontoados ao redor da louça e no desativado boxe; e o melhor, ao alcance das mãos. A noção do unir o útil ao agradável jamais me fora tão clara. Aqueles que gostam de ler e mais ainda nessas horas, hão de fazer coro comigo e exaltar, ao imaginar, tão poético lugar.
Perdido de um, perdido de dez. Valho-me desse jargão do futebol para contribuir ao explicar que, configurada uma humilhação, o negócio é relaxar. Daria no mesmo, ficar dois ou vinte minutos. Decerto o proprietário até esquecer-se-ia da minha pessoa, e só quando a válvula de descarga fizesse a velha tubulação estremecer as paredes com livros escorada, então se lembraria, sem, contudo, fazer conta do tempo.
Também há a advertência de que o muito tempo em tal exercício, favorece a dilatação varicosa das veias anorretais – já que estou no andar dos técnicos. Ou, as hemorróidas. Não estou aqui a desprezar quem assim teme. Até mesmo promovo esse perigo à classe dos perigos prazerosos. Infantiliza seus pensamentos quem julga não haver força no prazer e de não ser seus longos braços quem nos estreita a tais perigos.
O esposo ou esposa que trai seu conjugue, o faz pelo prazer momentâneo, embora tenha consciência que aquilo vai detonar sua vida, pelo menos por um tempo bem maior. O sujeito que coça freneticamente sua frieira, o faz pelo prazer louco que aquilo lhe trás, e nem quer saber, embora saiba, que aquilo vai maltratar severamente seus dedos.
Salto desse trem de divagações, para dizer que continuo respeitando àquela advertência, ainda que, até hoje nunca sofrera a fragosa conseqüência.
Voltando ao meu embevecimento: ao alcance das mãos e os mais variados temas, sem catalogação alguma; alcancei um de artes plásticas. Capa dura, fotos descoloridas, artistas que nunca ouvira falar... Mas me auxiliavam com o estilo barroco, art nouveau... Puxei um que me atraiu pelo tamanho; anatomia. Tentei procurar como funciona um intestino, a celebrar o casamento da teoria com a prática. Deixei de lado. Direito civil... Técnico em Eletricidade; magnetizado foi meu pensamento à imagem daquelas caveiras nas cabines de alta tensão; casa-de-força, para leigos. História... Astrologia. Será que astros exercem influência em tudo? Pensei no pobre Plutão. Na mitologia grega, era o deus dos submundos. Agora um deus anão. Deveria arrancar a folha e colá-lo à parede daquele submundo, mas nem espaço na parede, nem coragem em mim havia. Peguei uma enciclopédia. Observem que o critério é dos maiores para os menores. Do geral para particular. Tentei mais uma vez, ser eu mesmo, pano de fundo aos estudos. Procurei uma palavra, que não sei se feia, técnica ou aristocrática, mas era a que meu pai empregava quando eu era menino: evacuar. Ajudariam muito se naqueles tempos dispuséssemos de gírias como, passar um fax; libertar a marmota; escorregar o moreno, entre outros. Por fim, era a grande chance de um destrinchamento do termo. Mas nada. Joguei a obra – à enciclopédia, me refiro. Passei a relembrar que quando moleque, traduzia a expressão como um ajuntamento coloquial de palavras; resumo de uma frase assim: “... e vá cuar, menino!”. Mais tarde, sabendo que “cuar” não era nada, e colegiando, achei que tinha a ver com vácuo. Um ato para deixar um vácuo interno. Quando comecei a ouvir as notícias das atrocidades da polícia no regime da ditadura, abandonei tudo que já havia pensado e julguei ter meu pai, um homem simples, mas campeão de palavras cruzadas, feito confusão com termos: evacuar era então, abandonar uma praça de guerra.
Bem, foi o que acabei fazendo. Peguei minhas compras e evacuei. Não necessariamente nesta ordem.

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