terça-feira, 3 de junho de 2008

Seria mágico se não fosse evangélico: da impossibilidade de a arte existir na religião evangélica (2)


Universalidades

A maneira como a igreja trata com os temas universais e a resposta rápida que espera obter dos fieis, choca-se com a maneira com que a arte trata das mesmas coisas. Na igreja tudo deve ser tratado de forma sistemática a não deixar sombras de dúvida. E o ouvinte já se acostumou com isso. Mesmo porque, não há tempo para pensar, quem dirá refletir. Tomemos um sermão, por exemplo; ele é uma peça de oratória já fechada, conclusiva que quase sempre pinça um tema das universalidades e tenta mastigar para que o ouvinte tenha uma boa digestão e compreensão. Por mais profundo que seja esse discurso, esse ouvinte tem pouco tempo - para ser exato, uma semana – para a absorção ou não da mensagem, pois logo vem outro e mais outro. Como toda exegese está apoiada e revestida de uma “autoridade” própria daquele que prega, o escutador não se preocupa com o que lhe é instalado e vai dizendo amém a tudo, mesmo, como é comum, que alguém, no próximo domingo, fale exatamente o oposto ao que foi dito antes, e isso não em benefício da dialética.
No teatro, ou na arte de forma geral, os temas não são tratados assim. Ela liga um botão do nosso liquidificador e deixa ligado e o expectador vai processando. É sutil, ambíguo, e às vezes tão aparentemente insignificante que o “vazio” não é preenchido. É diferente porque agora eu saio perturbado e ao mesmo tempo motivado. Eu me questiono, eu me revolto, eu me vejo no outro, perco meu chão, mas me sinto mais humano, mais seguro.
Pensem: o próprio Jesus era um contador de estórias, que através do concreto e comum, feria as convenções dos temas universais e tanto seu texto como seu corpo trabalharam para uma peça perturbadora que até hoje estamos tentando perceber.

Dostoievsky disse que as grandes questões humanas só podem ser tematizadas pela arte. E como ela faz isso? Na exaustiva exploração das coisas pequenas. O relacionamento de uma arte com o universal torna-se tanto mais profundo quanto menos ela tenha a ver explicitamente com universalidades. E quanto mais se impregne com seu próprio mundo, suas expressões...
Theodor W. Adorno, um crítico de Marcel Proust, crê que este atingiu um grau de universalidade insuplantável na literatura moderna – nisso, não é apenas ele que afirma. Mas consegue isso com uma obsessão pelo concreto. Uma precedência ao frívolo em detrimento do essencial. Pela insistência ao fútil, ao insignificante.
Bem, precisaríamos bem mais que um mero blog pra falarmos disso e de Proust. Pretendo apenas levantar essa bola do imediatismo que há no meio, ou na cultura evangélica de querer abraçar um todo sem nem ao menos tentar observá-lo de longe.
Temos pouquíssimo, quase nada mesmo de teatro levado para a comunidade, mas e as obras literárias? Pergunte a um “irmão” qual foi o último romance que leu. Preferem livros de vida eclesiástica, teologia prática, bíblica, coisa assim. O que precisam já está ali. Pra que perder tempo em procurar num Proust, num Kafka, num Flaubert, num Machado...

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