terça-feira, 5 de agosto de 2008

Aflicção Científica

Num tempo em que já se faziam serem humanos em série e a ciência norteava as ambições, desnorteados e aflitos ficaram cientistas que conceberam pais.
Contratados pelo governo de um país do primeiro-mundo, – agora se entendia melhor esse título: queriam o mundo primeiro para eles – tais cientistas tiveram as maiores boas intenções - de boas intenções esses países estão cheios... Acreditavam que uma sociedade feita de famílias sob o jugo de um pai vigoroso, decidido, pertinaz, objetivo, seguro de si, assertivo, calmo, persuasivo, competente, religioso, responsável, honesto, fiel e outras tantas virtudes mais, que coubessem num chip, seria uma sociedade exemplar. Teriam então, a raiz para estruturação ideal de toda civilização: um país de pais pré-concebidos. Pré-con-sabidos.
Juntou-se tudo o que se tinha de melhor: biografias invejáveis; todas as reconhecidas obras sobre educação, pedagogia, psicologia, filosofia, tratados de auto-ajuda, milhões de dados técnicos juntamente com resultados de experiências entre famílias; e não esqueceram também das religiões e tudo de bom que cada uma delas tinha a dizer. Nada fora esquecido, para que, ao se processar tudo nesse liqüidificador mágico-científico, num futuro mais que perfeito, oferecessem à humanidade, perfeitos pais.
A primeira série de pais ficara pronta e foram apresentados para o mundo num grande congresso. Foram sabatinados e aprovados em todos os itens: como agir diante de birras; como convencer uma criança de seis anos a largar a chupeta; o que aconselhar para a menina que começa namorar; como se portar diante dos amigos dos filhos, como impor limites, quando dizer não, quando dizer sim, como não por a culpa na mãe e assim por diante.
Em larga escala, esses protótipos de pais começaram a ser produzidos e até exportados. Não importava a cultura de qualquer que fosse a nação e lá estava o pai-padrão. Era uma questão de tempo agora, para que se observassem os progressos e efeitos benéficos nas sociedades.
Passaram-se alguns anos e tudo corria bem com aquelas famílias de pais-padrão... Muito bem. Bem demais. Tudo muito equivocadamente perfeito foi o que se leu num relatório elaborado pelos gestores do projeto. As coisas estavam andando dentro de uma normalidade anormal; uma paz impertinente. Os bebês não choravam; o garoto não caía da bicicleta, nem, quando mais velho, brigava jogando futebol. Irmãos não discutiam na mesa do jantar, nem reclamavam da comida. Meninas não escreviam nada de seus conflitos, pois nem diário nem conflitos tinham. Nem choravam por paixão alguma. Filhos sem erros sem machucados; moleques que não sujavam roupa; não levavam broncas. Crianças sem criatividade, sem surpresas, sem sonhos... Nem aquele aperto no peito, que noutros mundos não sabiam o nome e que martirizavam pessoas quando distantes de seus queridos (saudades), nem a isso sentiam aqueles pais.
Um recall foi anunciado para troca averiguação, mas já era tarde demais. Alguns pais foram devolvidos à matriz do invento, acompanhados de ações contra aquela empresa daquele Estado, cobrando “ressarcimento dos transtornos pelo excesso de bem causado por tais pais às famílias...”.

Houve sim, notícias de uma família, sabe-se lá em qual desses países fora da nova-ordem, e que estavam realmente satisfeitos com seu pai. Isso em virtude de um defeito que apresentou, ou um “pau” no seu sistema central, que o levou a amar. Amou sua mulher e filhos. Constavam também das informações que chegou a se irritar com sua filha que não saía do Orkout (um Orkut mais avançado que dispensava teclado). Na época, por causa desta falha, a notícia foi abafada pela Cia de seguros da Empresa que gerou os seres. O mundo nunca soube que alguém fora feliz com um daqueles pais; nem os próprios cientistas perceberam o sucesso da falha, escapando-lhes a grande descoberta de que a vida jamais caberia num chip.

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