quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Um Caso de Transtorno de Pica - IV

Como dona Almerinda não possuía recursos - e convenhamos, seis filhos não permite a ninguém que se repare em detalhes comportamentais – só foi saber da doença do filho tardiamente, quando ele já tinha 16 anos. O marido a abandonara logo após o segundo filho. Os outros vieram com seu Alípio, com quem se amasiou. Isso era um motivo que a fazia se sentir culpada pelo grave problema do filho, mas sem em nenhum momento fazer transparecer.
Voltemos então à visita: era uma casa surpreendentemente arrumada. Quando adentraram à sala, os pais de Ataíde sentiram que estavam sendo aguardados. Os seis filhos de dona Almerinda estavam dispostos no malhado sofá em ordem crescente. Selma, Sonia, Samuel e Claudio – o que tinha Pica - Caio e Caiane do pai fujão. Esse cenário pouco mudou durante toda a visita. Sentaram-se nas cadeiras da cozinha que, quase uma com a sala, separados apenas com uma estante de caixotes pintados onde havia vários porta-retratos. Nas paredes havia alguns quadros sem nenhuma estética, como se fossem colocados onde já tinha o prego. Uma pequena televisão ligada, mas sem volume, apenas para distrair a menorzinha que assistia os desenhos.
Tomaram café, comeram bolo caseiro, conversaram coisas de se jogar fora, mas não sabiam como entrar no assunto. Era inevitável que, ora o pai, ora a mãe de Ataíde, varriam o ambiente a procura de, digamos, marcas da doença. Esses olhares terminavam sempre no sofá abarrotado de filhos, que correspondiam com um risinho encabulado e desconfiado.Caiane foi quem se aproximou da mesa e disparou: “querem ver meu irmão comer um prendedor de roupas?”. A mãe de Ataíde engasgou-se com o bolo. Dona Almerinda correu pegar um copo d’água. O esposo olhou para o sofá e os meninos se divertiam. Ele também sorri sem jeito. A que estava engasgada, recuperada, diz a Caiane: “Não é preciso...”.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Babush II

Zonatal

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Um Caso de Transtorno de Pica III

Contudo, cada fase trazia uma preocupação; um agravante. Aos catorze anos, quando a pré-adolescência abre a janela para um horizonte com a silueta da sensualidade, Ataíde não poderia ser deixado sozinho, como seria natural, em companhia de revistas masculinas. Literalmente, ele comeria a revista. Apesar de já estar acostumado à ingestão de celulose, nesse caso poderia ter uma overdose. Foi um momento delicado para a família, pois desejavam que ele tivesse uma adolescência normal e de forma alguma queriam constrange-lo com restrições, espionagens, sanções, etc. Mais uma vez os pais souberam acompanhar o momento com muita diligencia e bom senso e em nenhum instante se entregavam à procrastinação. É hora para dizer o que até aqui ainda não fora dito por esse narrador, que desde os primeiros dias da identificação da doença, pai e mãe se revezavam sistematicamente em tarefas as mais insólitas, para não dizer ingratas. Por exemplo, uma investigação diária e acurada das fezes do garoto para, ao mesmo tempo que conhecer suas preferências, tentar identificar a classificação da patologia segundo essas mesmas preferências.
Por falar em classificação, - o que não vem ao caso de transcrever todos os tipos aqui - aqueles pais tiveram contato com uma senhora cujo filho sofreu de um típico caso de Xilofagia acompanhada em grau menor de Urofagia. A primeira se refere ao impulso de comer madeira; o segundo ao impulso de beber a própria urina. Foi a mãe de Ataíde quem, pela internet, conheceu dona Almerinda, mãe de seis filhos dos quais o terceiro possuía o transtorno. Não foi sem muita relutância que a procurou para trocar e, principalmente, aprender com as experiências daquela senhora. Na verdade fizeram-lhe uma única visita. Uma única visita, mas bastou para que se ficassem imagens que custaram a sair da cabeça do casal.

(continua)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

As pessoas que eu gostaria de encontrar no céu

As pessoas que eu gostaria de encontrar no céu,
segundo as normas de salvação
e os critérios de se reconhecer um réu,
é bem provável que no céu não estarão.

Não são anjos que me inspiram;
ocasos deslumbrantes num deserto,
decerto que não seriam.
Ao coro de vozes não me desperto,
nem à intrincada melodia lauta;
saiu do tom o que me intriga...
Desafinou, pulou da pauta
o que me encanta e irriga.

O que alenta um espírito
assim tão frágil tão incauto,
não é o forte nem o fausto;
é vício de vida o que respiro.
As pessoas que eu gostaria de encontrar no céu,
são as mesmas que encontro ao léu.
E as cadelas que vagueiam prenhas
nas calçadas lixando suas mamas...
E um pombo cinza de guerra
que erra por não ser branco,
aos pés do vadio sentado no banco
que banca todo lixo da terra.
O que me lança vivo na fogueira,
não é promessa de vida eterna
ou recompensa devida e terna;
é a vida e a causa
das pessoas e coisas
que eu gostaria de encontrar no céu.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Ponto de Vista


terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Babush Calçados


segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Um Caso de Transtorno de Pica - II

Nessas incursões que faziam nas ciências, pai e mãe de Ataíde Gustavo, foram parar no esoterismo, pois perderam o linear, às vezes muito tênue que separa ciência desse último. É certo que ajudados por uma tia do menino que sempre via umas luzes, umas auras nas fotos em que ele estava. Nunca quis interferir diretamente, mas sempre teve muita paciência em ficar com a criança e lhe trazia luas e estrelas com recheio de caramelo, cartas de tarôs de maizena e outras guloseimas de aspecto não comestível. - Se isso fizera bem ao desenvolvimento do garoto não se sabe, mas o fato é que nunca contavam exatamente tudo aos profissionais. Foi ela, a tia, quem insistiu para que se acrescentasse um “H” ao nome do sobrinho: “Athaíde”, atingiria maior vibração numerológica, uma vez que a soma dos números correspondente às letras daria 12; número de força simbólica muito grande. Embora fosse muito grato à prestativa cunhada, o pai jamais permitiu.
Doze também era a idade de Ataíde Gustavo quando a tia viajou para Índia junto com um grupo que se especializava em cabala. Dizem que ficou por lá e casou-se com um professor. Correspondeu-se por um tempo com a família fazendo suas doutrinações e compartilhando suas novas descobertas no mundo dos mistérios. Depois, sendo o tempo mistério maior, ficaram mais esporádicas e esquisitas suas palavras até minguarem de uma vez. Não sentiram a falta o cunhado e a irmã; estavam noutra. Gustavinho talvez, pois reclamou por um bom tempo a falta das cartas de maizena, que a mãe tentara em vão fazer, mesmo com as receitas.
Nada vem só para o mal nem só para o bem. O bom era que Ataíde Gustavo tinha uma saúde de ferro. Todos os médicos e especialistas por onde haviam passado, já haviam assegurado que ele teria problemas sim, sem um acompanhamento adequado, mas para consolo dos pais, afirmavam que o menino criaria anticorpos poderosos e não era qualquer coisa que o derrubaria. Começando das doenças de infância como catapora, sarampo e outras que nunca contraiu de fato.

(continua)

sábado, 13 de dezembro de 2008

Um Caso de Transtorno de Pica

Ataíde Gustavo sofria do Transtorno de Pica. Mal também chamado de Alotriofagia, que é um desejo incontrolável de comer coisas não comestíveis.
O diagnostico foi feito tardiamente, mas desde a mais tenra idade já apresentava os sintomas. Isso porque é muito comum crianças até certa idade levar tudo à boca – fase oral – e por se tratar de patologia rara, não dá para ter certeza sem exames e testes numa fase posterior. E Gustavinho, para dissabor dos pais, era um caso.
Depois de confirmada a suspeita dos peritos, a mãe começou a recordar então de algumas situações que nos primeiros anos de vida de Gustavinho, achava estranho, mas como era mãerinheira de primeira viagem, deixava prá lá. Às vezes contava às vezes não, ao marido. Estava explicado porque ele só mamava no peito quando ela colocava o sutiã. Como a mãe percebeu isso não se sabe, coisa do instinto materno. Talvez ela achasse que com o sutiã, o colostro teria um gosto mais aceitável para o paladar de Ataíde, enfim... Foi atrás de alguns sutiãs que havia guardado daquela época – mãe tem dessas coisas – e percebeu de fato que as pontinhas estavam carcomidas, ou melhor, comidas; “carcomida” dá idéia de algo que o tempo e a traça roeram... Mas não! Gustavinho comeu mesmo! Tivesse o bichinho, dentes nessa fase, e ela sentiria na pele.
Houve um período assim mesmo, de descobertas e espantos, após Ataíde Gustavo completar nove anos de idade, quando a doença foi constatada. Sumiços de objetos; um rato que nunca conseguiam pegar apesar das inúmeras ratoeiras e dedetizações; o mistério das xícaras quebradas nas bordas – e tome bronca a empregada; o esquartejamento dos bonequinhos do Forte Apache – e tome chineladas o cachorro; os móbiles capengas sobre o berço; os pequenos buracos na terra no quintal... Agora estava tudo esclarecido. Até as acusações dos coleguinhas do primário, as quais a professora ignorava, de que Gustavinho estava comendo os apontadores e borrachas da turma, agora procediam. A mãe não quer nem pensar muito do que não teria ingerido o seu filhinho na fase oral, quando realmente se juntou à fome a vontade de comer.
Passados esses dias de choque, vieram dias de aceitação e conformismo. O jeito era adaptar o ambiente para o filhinho especial e, como é comum, a mãe foi para a internet, aos grupos de ajuda, associações, etc. Passava horas estudando e lendo sobre casos semelhantes e suas terapias. À terapia também recorreu; individual, família, em grupo. Esta última não deu muito resultado. Pelo contrário, aumentou o sentimento de exclusão que Gustavinho já nutria, pois os monitores que ficavam com os filhos dos pacientes, freqüentemente se queixavam que seus materiais didáticos viravam lanche do gulinha. “Gulinha! Que terminologia mais discriminatória e inadequada...” Dizia a mãe. No entanto, acreditava que a ciência era o caminho e continuou nos estudos, nas consultas, nos exames.
Nessas alturas já estava a família perfeitamente formatada e disciplinada. Já tinham mais uma menina, que tiveram quando Ataíde Gustavo completara nove anos. Veio meio sem querer. Quer dizer, queriam muito outro filho, mas também era natural o medo. Precaviam-se, mas nem tanto. E quando veio a notícia da gravidez, o pai até, meio sem graça brincou: “será que o Gutinho mastigou uns preservativos também?”. No entanto, todo temor com relação à menina se desfez quando ela naturalmente mamou no seio nu.

(continua)