quinta-feira, 20 de maio de 2010

O Garanhão Homossexual (da Série, Animais Especiais)

Aos quatro anos de idade Gonçalo deixou a fazenda. Teve uma conversa com a égua mãe – já que pai de cavalo é sempre muito ocupado e quase nunca está por perto – e saiu.
Gonçalo era um Mangalarga Marchador formidável. Mas fazia marchar por, vamos dizer profissão e não por vocação. Não gostava. Dizia aos mais íntimos – pouquíssimos diga-se – que aquele negócio de marchar lembrava cavalaria organizada imperial. Não que ele já tivesse participado de muitas, era ainda jovem, mas daquilo que ouvia dos mais velhos e da própria mãe que contava da nobreza e singularidade da raça e tudo mais. Ouvia que seus semelhantes eram imbatíveis quanto a acompanhar o ritmo alucinante das caçadas e também, na lida com o gado em campo aberto. Para Gonçalo não passavam de vaidades. Deixou aqueles campos por causa das suas próprias; e também pelo seu orgulho. Menos pela chateação dos demais equinos que não lhe ignoravam os modos, do que pelo seu amor próprio e desejo de liberdade.
Quanto à aparência podemos descrever aquilo que se leu nos cartazes espalhados pela redondeza após seu sumiço: “... 'Garanhão' de origem real portuguesa, marrom escuro, expressão vigorosa, olhos escuros e atentos, fronte larga e plana, narinas grandes e flexíveis, pescoço de musculatura forte, crinas pretas e ralas, finas e sedosas, como a calda, com a ponta levemente voltada para cima ao andar; é um marchador mais tenta disfarçar no trote...”. Este último item era de fato o que mais o caracterizava. Cauda de sabugo curto e rijo, como batuta, dava o tempo para a própria coreografia do corpo inteiro. Enfim, Gonçalo era mais do que esse narrador seria capaz de descrever e menos do que possa interessar ao distinto leitor.
Gonçalo era um Garanhão homossexual, mas seus senhores não entendiam assim. Como um excelente exemplar da raça, insistiram até o fim para que cumprisse as coberturas com as mais belas éguas. Porém, para ele, só companheiras; éguas iguais. Assim, começaram a tratá-lo como um animal especial, que para a susceptibilidade de cavalo, especial não é nada especial; Entendia mais como espéciemal.
E a coisa foi ganhando cada vez mais distinção e, como até nos preconceitos aceitos por uma sociedade, a primeira evidencia disso e até mesmo que se auto-denuncia é a linguagem, Gonçalo passou a ser conhecido como Gayranhão. Pronto, aí todos já não precisavam se preocupar mais. Quando se dá um nome ao problema, o problema se enfraquece, e o seu objeto vira abjeto. Não forçaram mais a barra com Gonçalo. Isolaram-no, e pior, transferiram seus poucos amigos machos do cocho.
Apesar de tudo, Gonçalo não sofreu maiores danos. O que lhe importava mesmo era a liberdade, da qual corria atrás. Embora a discriminação galopasse sem barreiras, ainda utilizavam-no para caça. Isto sim lhe perturbava, assim como a indiferença dos outros cavalos, com relação a ajudar na matança de raposas, veados e outros bichos.
Abandonou o lar numa primavera, quando os chacais saem para acasalar e os caçadores se aproveitam dos uivos e descuidos dos machos. “No que depender de mim, esses carniceiros vão fazer amor tranquilos, sem a espreita dos covardes!”, pensou Gonçalo. E como fazia todas as manhãs bem cedo, quando a relva ainda se cobria do sereno e uma nevoa densa cobria a mata que cercava a propriedade, Gonçalo galopou em direção a ela e não retornou mais, desbravando o medo e as superstições, comum entre os Mangalargas, quando a ordem era entrar nestas nuvens.
A fama de Gonçalo perdurou nas cercanias. Para os cavalos mais velhos e honrados, uma aberração irônica da natureza. Para os mais jovens Garanhões, fascínio e mau exemplo, curiosidade e submissão, tudo ao mesmo tempo. Para a velha mãe, retratos e abandono.
De qualquer forma não conseguiram apagar sua imagem. E as imagens são sempre mais fortes para aqueles que não as viram. Tendem a crescer e ganhar maior impressão, para o bem e para o mal. Os que queriam menosprezá-lo, diziam ter ele, assim que fugiu em meio às névoas, tropeçado e quebrado a perna, sendo sacrificado. Os que queriam seu esquecimento, diziam aos filhos que ele era uma invenção, um folclore, um tipo mula-sem-cabeça, que pegava os potros desobedientes. Para os que queriam sua abominação, diziam que se enamorou com outros garanhões e, sem o saber, com o próprio pai, afinal de contas, pai de cavalo é sempre muito ocupado e não reconhece a própria descendência.

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